Brincadeira de criança sempre tem
um gosto de quero mais, uma ausência de perigo e uma irresponsabilidade natural
isenta de qualquer maldade. Sempre se ouve dizer dos mais velhos que no seu
tempo de criança as brincadeiras eram melhores e mais participativas do que hoje
em dia. Que outras seriam impensáveis nos dias de hoje pelo medo coletivo e o
excesso de zelo com tudo, que poderia gerar problemas mais sérios. No interior,
parece que se curte mais o ato de brincar. Sei de histórias com detalhes
engraçados como de um garoto que ao roubar goiaba do vizinho com o filho de outra
vizinha, apoia-se em uma cobertura dessas antigas telhas de amianto, sem
perceber que as mesmas estão apenas encaixadas e não parafusadas. A queda e o
barulho enorme são inevitáveis e acordam o senhor dono da casa, que já de espingardinha
de sal em punho, brada que vai matar os moleques. Esses escalam o muro como
gatos assustados e não se sabem como passam pelos arames farpados sem nenhum
arranhão e batem o recorde de velocidade rua acima. Um deles passa a jato em
casa e diz prá mãe que está sendo seguido e jurado de morte. Foram parar no
final da avenida que dá acesso à cidade, já na cabeceira da rodovia e voltam
com passos contados. Não tinham sido seguidos, não levaram tiros de sal. Chegam
em casa e já deparam com uma bronca daquelas com os pais irados por terem que
pagar uma cobertura nova por vizinho que não estava no orçamento. Menos mal que
não estavam machucados, apenas exaustos da longa corrida de ida e caminhada da
volta.
Em outra ocasião, brincam em
bandos na rua de casa numa sexta-feira à noite. Já mais tarde, os feirantes do
dia seguinte começam a chegar e preparar suas barracas e descarregam muito
material. Alguns se aprontam e voltam para as kombis e caminhonetes para dormir
cedo. A molecada decide brincar de polícia e ladrão. As caixas ali expostas
contêm frutas e legumes e são usadas como parte do jogo. Na brincadeira, se escondendo, alguns moleques enfiam
suas mãos por debaixo das lonas e puxam maçãs, carambolas, tomate e correm e
comem ali perto o resultado da feira antecipada. Um outro mais afoito, enfia a
mão por debaixo da lona e sente algo ao mesmo tempo que ouve o dono da barraca
gritar “Ah, moleque safado” e voa como nunca quarteirão acima com o produto
roubado nas mãos. Era uma enorme mandioca crua. O que fazer? Esperar que o
feirante voltasse a dormir poderia demorar. Então trocam de camisetas entre si e
vão devolver dizendo que os moleques do outro quarteirão passaram correndo por
ali e largaram no chão. Em recompensa pelo bom ato, ganham uma penca de bananas
do feirante sonolento.
Em certa época, a companhia de
saneamento decide trocar toda a tubulação de esgoto da cidade criando
verdadeiras valas pelas ruas do bairro. São valetas que cortam as ruas na
largura do quarteirão resguardando toda a terra retirada para finalização do trabalho.
Os paralelepípedos amontoados formam convidativas trincheiras. A molecada
munida de muita mamona e estilingue começa uma guerra de grupos, mas a
estilingada dói e para não perderem munição, conquistada nas margens do
ribeirão, resolvem disputar qual grupo acerta mais grilos e lagartixas nas
paredes externas das casas da rua. Resultado: Uma rua inteira com casas
manchadas do verde das mamonas em seus beirais, moleques todos doloridos das
estilingadas anteriores e alguns vizinhos furiosos com a nova pintura de suas paredes.
Férias são boas e um ótimo
momento para se soltar pipas. Idas ao ribeirão para pegar bambu e fazer as
varetas, pegar jornal na vizinhança e vender no mercado para comprar linha 10 e
papel de seda e fazer a própria pipa com cola de trigo. Passa-se o dia todo na
rua debaixo do sol, ignorando os chamados de almoço e pedido das mães para saírem do sol. Já é início de noite e os mais fissurados lutando contra o lusco fusco para tentar
enxergar a pipa no céu. No dia seguinte teria mais, Linha sendo enceradas com
cerol feito pela galera mesmo que mói vidro e mistura com cola de madeira e
passa na linha. Briguinhas no céu e um corre-corre para pegar uma pipa rodando,
isso quando no emaranho, a pipa é trazida enroscada recolhendo a linha o mais
rápido possível. Cortar e trazer, uma sensação de vitória de boa briga. Mas o
tempo resolve fechar e a garoar. As pipas ainda no ar molham seus papeis bem esticados
que arrebentam e ficam desgovernadas. Alguns cortam as linhas e deixam a pipa rodar.
Quem sabe reaproveitar a armação fica de olho nas maiores para pegar. Numa
dessas, uma das grandes enrosca na antena da vizinha faladeira. Telhado úmido e liso.
Dois sobem para tentar pegar a pipa enroscada no alto da antena. Conseguem com
ajuda de um pedaço de bambu, mas escorregam. O telhado não tem beiral e a única
coisa para se segurar é a calha. Essa é trazida inteirinha até o chão segurando
os dois moleques que subiram naquele telhado liso molhado pela garoa que caía.
Algumas telhas caem e o barulho chama atenção da dona da casa que apronta maior
escândalo, gritando para Deus e o mundo. Pipa rasgada na mão, assustados, tiveram,
pelo menos, um final de semana inteiro de castigo para fazer mais pipas e
começar tudo de novo.
E não acaba por aí.................
* imagem: pipa feita pelo autor