quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Conto solto - Atenção tripulação,preparar para a decolagem!

Era uma loja diferente. Vendíamos passagens aéreas de uma determinada companhia de bandeira, líder de mercado. O sistema era relativamente novo, porém sucateado com equipamentos obsoletos, mas que garantiam a execução dos serviços. O treinamento era uma aventura à parte. Ficávamos imersos por 45 dias na capital, com hotel e transporte pago e recebíamos o salário integralmente, o que permitia algumas extravagâncias.
Convivíamos com realidades e sotaques bem distintos dos colegas dos quatro cantos do país. Éramos uma salada regional e cultural. Passeamos muito mostrando a metrópole para os forasteiros, fomos ao teatro, assistimos lançamento no cinema, passeamos por bairros típicos da capital, ruas de comércio popular, museus. Fomos até numa apresentação teatral pornô. O que seria uma aventura de um grupo de rapazes, logo invadida pelas meninas que queriam ir de qualquer jeito. E fomos!
De volta à realidade do dia-a-dia da loja, era hora de aplicar todo o conhecimento recebido no atendimento ao público, o mais distinto possível. Ora eram os travestis que queria comprar passagem para Milano, mas queriam viajar com seus nomes artísticos. Isso demandava uma boa dose de firmeza para explicar que o que vale é o nome do passaporte. Eles entendiam! Ora era atender passageiros como um feirante de bermuda e camisa aberta, aparência completamente simples e despojada, mostrando a enorme barriga, que sempre comprava as mesmas passagens para Orlando, para ele, esposa e um casal de filhos. Pagava à vista sem pedir desconto nem nada e vivia feliz dessa forma. Por mais que a gente falasse e sugerisse outros destinos, lá ia ele para a “América”, como se fosse o único lugar fora do Brasil.
Ora eram os chineses que demandavam um tratamento mais lento para entender aquele inglês de sotaque sofrível e carregado e decifrar que “erévo” queria dizer “eleven”. Ora se desdobrando em explicações para explicar a alguns funcionários de empresas que eles não poderiam desmembrar o bilhete recebido para que pudessem dar aquela passadinha descompromissada em tal lugar fora da rota. Uma vez atendi uma senhora distinta, elegante, que queria ir se encontrar com uma amiga na Europa. Na época, a empesa voava para mais de 10 destinos no continente europeu. Toda vez que eu questionava qual era a cidade de destino ela respondia com um sotaque apaulistanado:  “Ora querido, eu quero ir para a Europa”. Depois de uma manobra com o Atlas em mãos, descobri que o destino era Londres. A viagem deve ter sido divertida!
Em outra situação recebemos um comunicado de nossa matriz que determinados cartões de crédito tinham sido clonados e que a quadrilha estava agindo na nossa região. Quando solicitasse aprovação no sistema e recebesse um determinado código, era sinal de que aquele cartão estava bloqueado para compra e deveria ser imediatamente informado à matriz. No mesmo dia, uma colega atende um senhor que quer pagar a passagem com um cartão desses, obviamento bloqueado no sistema. Aquele senhor calmamente ofereceu outro cartão que também estava b
Muito gentilmente, a colega ofereceu o telefone para que ele ligasse para o gerente de seu banco verificasse o porquê da não liberação do cartão – isso era comum. O passageiro alegou problemas com o banco, disse que trocaria de cartão e voltaria depois, o que nunca aconteceu.
Em outra situação, um passageiro após barganhar o máximo possível três bilhetes para determinado local do país, acaba comprando os bilhetes mais restritivos existentes que ofereciam 70% de desconto, sem prestar atenção às regras de alteração e cancelamento. Ele volta 48 horas depois para solicitar o reembolso dos mesmos. Era possível, desde que obedecida as regras da tarifa que não devolvia 100% do valor. A raiva do passageio foi tanta que ele trincou o vidro da mesa com um soco após um palavrão que pôde ser ouvido em todo o quarteirão. Minutos depois, seu sogro entra na loja e pede desculpas pelo temperamento do genro. Eram passageiros de altas patentes.
Muitas situações hilárias aconteciam. Uma vez ao sugerirmos qual tipo de alimentação o passageiro queria (era parte do atendimento e o diferencial da empesa), o rapaz não hesitou e pediu bife com fritas! Mal sabia ele que a única coisa que se faz no avião é café. O resto está tudo pronto! O cardápio solicitado não fazia parte do que era oferecido. Outra vez, um passageiro queria sentar nas poltronas do meio, desde que na janela. Até hoje nunca vi nenhuma aeronave com jardim de inverno. Os mais espertos queriam se aproveitar da fusão de conglomerados aéreos (code shares) para juntar o máximo de milhas possível ou mesmo conquistar a tão sonhada tarifa volta mundo pagando preços bem competitivos. Não é tarefa fácil aliar tempo, viagem, permanência, vistos, etc. para tal, mas não é impossível.
O atendimento às agências de viagem eram um capítulo à parte. Queriam negociações de grupo mirabolantes, como se a cia aérea estivesse 100% disponível para aquele passeio. Queriam flexibilizar horários, tarifas e acordos impensáveis, comercialmente falando. Dávamos suporte no cálculo de tarifas e numa dessas vi uma colega buscando Israel no Atlas, mas ela estava na página do Alasca. No início, alguns códigos de cidade e/ou aeroporto confundem. Só para dar uma ideia: São Paulo é SAO, Guarulhos é GRU e Congonhas é CGH. Alguns voos de/para São Paulo podem ser operados por Campinas CPQ, onde o aeroporto se chama Viracopos, cujo código é VCP ou mesmo São José dos Campos que é SJK, código tanto para a cidade quanto para o aeroporto.  Cuiabá e Campo Grande, cada qual no seu Mato Grosso também confundem, pois são, respectivamente CGB e CGR. No aeroporto muita etiqueta de bagagem para Manaus (MAO) era refeita porque saía com o adesivo de MAD (Madrid). É um mundo de códigos além dos das cidades e aeroportos. Temos também os códigos das cias aéreas, dos tipos de serviços, código de tarifa, código de passageiro, código de identificação. É código que não acaba mais e o inglês que é a língua mater.
Outra tarefa de que demanda experiência é auxiliar agente de viagem novo. Explicar a questão do fuso horário em voos internacionais e necessidade visto e/ou passaporte para determinados lugares do mundo. Há ainda passageiros que querem passar a passagem para outra pessoa ou receber de outra pessoa. Não é tão simples assim e chega a ser impossível. O bilhete aéreo é um contrato de viagem, nominal e intransferível.
Outra faceta distinta desse ramo é o atendimento corporativo. Grandes empresas movimentam volumes imensos de passagens através de suas agências especializadas em atendimento corporativo. É outro mundo. Rápido, prático, estressante, com mais regras, restrições e algumas regalias permitidas pelas cias aéreas que buscam um naco desse faturamento.
É um mercado interessante de viver de perto, um mundo com sua linguagem própria, sua formatação, seus personagens. Uma experiência valiosa, onde é possível fazer bons contatos, onde se tem o trabalho reconhecido, pelo menos por uns poucos (isso gera discussão), uma experiência de trabalho válida.
Afinal, como na vida, tudo é passageiro!


imagem: avião Google imagens



Conto solto - Tolo de ouro

Nunca fui ligado em etiqueta, mas já fiz questão roupas de marca, tênis da moda, celulares de última geração. Já exigi isso de mim mesmo e com o tempo a gente aprende que isso é bobagem. Na minha fase final de adolescência eu tinha uma correntinha de ouro. Tinha voltado prá casa dos meus pais depois de passar um ano morando com meu irmão numa cidade litorânea onde fiz e ainda mantenho alguns amigos. Foi uma boa experiência viver um pouco mais desgarrado, de alguma forma, com uma liberdade ampliada, porém vigiada, sabe-se, mas os tempos eram outros. Minha volta foi marcada por alguma tristeza porque deixaria para trás amigos que partilhavam de sonhos iguais, com quem dividi muitas experiências interessantes, sentimentos muito fortes dessa faixa etária em que parece que todos os projetos darão certo.
Depois de um bom tempo, resolvo ir passar um final de semana em companhia desses amigos. Me programo todo. Me achava rico com o pouco dinheiro que tinha. Pagaria a passagem ida e volta e alguns pequenos prazeres em companhia desses amigos de lá. Fui. Curti. Na volta, espremi os horários para aproveitar cada segundo do passeio na companhia deles. Pego o ônibus na hora marcada, um dos últimos.  
Teria que fazer uma baldeação (como se chamam as conexões) em uma cidade intermediária e pegaria um outro ônibus que me deixaria a algumas poucas quadras da minha casa. Chegaria no começo da madrugada, um pouco depois da meia-noite. Claro que meus pais não gostaram da ideia. Numa época sem o telefone celular para poder fazer contato com maior liberdade. Na subida da serra, um pequeno acidente atrasa a subida em meia hora, tempo suficiente para eu perder a conexão de volta prá casa. 
Não desisti. Haveria outro ônibus que fosse para o meu lado. Detalhe: grana contada. Cheguei no guichê e não haveria mais ônibus para o meu destino. Pensei. Me informei de quais ônibus iriam sentido São Paulo. Haveria um dali a uma hora em que eu poderia pagar um pouco mais até Aparecida e eu poderia descer na entrada da minha cidade, ainda na rodovia, caminhar um pouco mais e estaria em casa. 
O preço da passagem era bem maior do que eu tinha em mãos. Não hesitei e com receio de passar a noite ali naquela rodoviária, ofereci o único bem maior que possuía ali: minha corrente de ouro. Era fininha, bem leve, modelo simples, mas era o que eu tinha de mais valor naquele momento. Nem passava pela minha cabeça pedir ajuda para parentes daquela cidade naquela hora de domingo. Seria muito mico a pagar e eu saberia resolver aquilo sozinho. Acho que nunca souberam desse episódio.

Fiz negócio com o cara do guichê. Troquei a correntinha pela passagem e ainda fiquei com o dinheiro que eu tinha para comer. Segurei firma naquele final de domingo até um pouco depois de Queluz e apaguei. Passava das 2h. Acordei no susto quando o ônibus parava nos 3 Garças, tinha perdido a entrada de Lorena por causa de 20 minutos de cochilo. 
Resultado: Liguei para casa do orelhão para dizer que já estava ali e o que aconteceu. Ouvi, já sabem!. Eu esperaria o primeiro ônibus por volta das 5h para voltar prá casa. Nunca a hora passou tão devagar quanto naquela madrugada. Eu olhava o relógio a cada meia hora e o ponteiro andava apenas cinco minutos. Perdi tempo, a correntinha, perdi horas de sono e fui trabalhar na segunda super cansado, quebrado. Porém, curti um longo e bom fim de semana com os meus amigos da época.


*imagem: google imagens

Conto solto - Filhos de Tarzan!

Seria mais um final de semana daquela grande turma de amigos sem muita programação se não fosse a ideia de um deles de ir para a roça. Essa era a forma de dizer que iam para o sítio (roça mesmo, chacrinha, casa de campo) de algum parente passar o final de semana. Uma ideia prática e muito barata para aquele grupo de quase durangos. Cada qual faz uma limpa em suas casas juntando o que cabia na mochila: roupa de dormir, short de banho, chinelão, uma blusa de frio, pacotes de macarrão instantâneo, toalha, escova de dente, cueca e meia, molho de tomate pronto, bolachas, até mandioca...algumas boas fitas cassetes com um vasto repertório de boa música.
Apertam-se nos poucos carros disponíveis ou mesmo em ônibus de linha que os deixariam próximos do local até serem apanhados numa segunda viagem. Chegam na noite de sexta, fazem um mutirão de limpeza na casa a fim de ventilar o local, trocar as roupas de cama com cheiro de guardada, matar possíveis bichos não difíceis de encontrar como aranhas e escorpiões, sapos e cobras ligarem a bomba e esperar a caixa d´água encher, separa alguma lenha para o fogão da varanda, esticarem as redes, preparar as mais diversas criações culinárias para aplacar a fome. Som alto, cada qual fazendo uma função, banho, hora da comida, alguma sobremesa fácil ou já pronta, hora do jogo com muita gritaria, palavrão e muita armação para não perder o embalo das brincadeiras. 
Momentos de papo sério com algum problema de ordem pessoal de um dos amigos, conselhos, uma caipirinha, som de violão na varanda sob o céu sem interferência de iluminação artificial, enrolados em cobertores e edredons, vagalumes, pios noturnos, sustos das mais medrosas com armações previamente montadas para esse fim.

De repente estão todos na varanda frontal dessa chácara, quando um dos colegas, disfarçadamente chama um a um dos rapazes com gestos discretos e ali arma uma pegadinha para os demais. A frente a chacrinha é toda cercada de mangueiras que se entrelaçam os galhos, com balanços e cordas penduradas para brincadeira da criançada. Cerca de 7 sete rapazes ficam nus, desligam o relógio central da casa, causando a escuridão total, sobem nas mangueiras e ficam ali balançando como babuínos de bunda branca fazendo algazarra. Já é começo de madrugada os comentários são os mais toscos possíveis. 
Quando, de repente, a luz se acende, pegando todos os filhotes de Tarzan desprevenidos e surge uma das amigas de dentro da casa com todas as roupas dos pobres homens macacos nas mãos. E agora? Como descer sob a luz e se vestir? Negociações absurdas são feitas ali entre o chão e as mangueiras. Uma engraçadinha dizia estar vendo uma manga bem suculenta pendurada e pede prá chuchar com bambu. Outra sugere jogar água e trigo. Outra disse que na casa tem espingardinha de sal e estilingue. Nunca descemos tão rápido e rasteiros de uma mangueira, de madrugada e com alguma cerveja, caipirinha ou todinho (batida de vinho tinto, leite condensado e abacaxi) na cabeça como naquele dia. Na descida o barulho de uma locomotiva que se aproxima da entrada da cidade ilumina mais ainda o local e parece que aquele apito foi proposital diante da cena vista pelo maquinista que acenava na curva. Voamos prá dentro da casa e vestimos o que encontramos pela frente para poder negociar a devolução de nossas roupas! 
A negociação foi longa e cheia de micos a serem pagos, mas conquistamos nossas roupas de volta. Rimos muito. Dormimos tarde naquela noite! 
No dia seguinte..................eu conto depois


*imagem: macaco cheiro

Conto solto. Decadence avec elegance !

Três irmãos de uma grande família. Saíram juntos, pois a caçula estava com um trabalho temporário em uma cidade turística próxima e naquele dia o evento acabaria mais tarde que o normal. Combinaram de irem e voltarem juntos em função do horário. Um dia frio, tranquilo e de muitas caminhadas que a cidade sugere em suas visitas. 
Enquanto isso, a caçula em seu trabalho num stand de veículos importados na casa de alguns milhares de dólares. Expostos, esses carros atraem todo tipo de público com muitas dúvidas e pedidos de fotos. Na cidade, o vai e vem normal de um final de semana de frio na serra, com várias opções de alimentação e passeio. 
Depois de percorrem todo o centro, o bairro vizinho, visitarem o pico, teleférico, mirantes, de muita comida e chocolate, resolvem descansar numa das praças daquele movimentado centro.
A irmã mais velha reclama de dor nas pernas de tanta ladeira. O irmão do meio não sente tanto, mas agradece a pausa ali naquele lugar sob um sol fraco do meio tarde para relaxar. A irmã reclama que a bota recém comprada está pegando e machucando seus pés.  
Resolvem esticar por ali, tomar um café, fazer uma longa pausa observando o movimento, vendo apresentações de artistas de rua, vitrines próximas, feirinha de artesanato.
A noite cai junto com a temperatura e cidade perde alguns grupos de turistas de final de semana. No local dos stands, o movimento é bem menor e permite uma melhor circulação pelo local sem muito aperto ou vai e vem de multidão. Uma feira de muitos olhos e poucos bolsos, Objetos importados, de grife exclusiva, artigos inúteis para nosso tipo de clima. Uma mostra da riqueza e do luxo que existem no mundo. Grifes que brilham aos olhos dos consumidores. Marcadores de preços com números na casa de algumas centenas e milhares de reais e até mesmo euro e dólar.
A ambiente cria um ar blasé. Comentários não são feitos a fim de não causarem alguma cena engraçada ou expor ali a mediocridade da classe média achatada permitida por uma estabilidade financeira de ordem política. Os poucos comentários perceptíveis são os mais sussurrados possíveis.

A irmã caçula deixa o stand no seu final de expediente e de feira e se acaba num lanche reforçado antes de voltarem para casa. Já no carro, a irmã mais velha declara que seus pés estão doloridos, com vermelhidão e mesmo algumas pequenas bolhas. Ela não deveria ter tirado as botas na praça mais cedo. 
Atendendo ao pedido dessa irmã, param o carro em frente uma farmácia na saída da cidade e decidem comprar alguns adesivos curativos. 
Todo o glamour adquirido por osmose naquela feira se perde, quando  o irmão, nada discreto, de dentro da farmácia, em tom de brincadeira e leve maldade pergunta em alto e bom som: "Quantas bolhas são?????"

imagem: abacaxi chique!