sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

...e lá vou eu....

Querem acabar com a Globeleza!
Questão que tem sido repetida inúmeras vezes nas redes sociais e em pouco tempo ganhará debatas acalorados e inflamados em programas de auditório, abafando discussões mais importantes, diante do cenário político que vivemos e que mexe muito mais diretamente com nossas vidas que as folias de Momo.
Uma suposta apresentação do vídeo da vinheta de carnaval da Rede Globo teria sido mostrado para americanas negras que se manifestaram contra a exploração do corpo feminino, coberto apenas de tinta, que requebra sensualmente ao som de cuícas, pandeiros e tamborins. Nessa mostra, a maioria das mulheres é contra a exposição de um corpo feminino e negro. Outras sugerem que seja um casal, outras que a mulher seja trocada por um homem, entre tantas outras opções e sugestões.
Voltando ao hemisfério sul, precisamos entender algumas coisas. Não para justificar ou abrandar o calor da discussão, mas como toda discussão, é preciso ter maiores informações sobre o assunto.
A exposição da figura feminina no Brasil é um retrato fiel do chamado imperialismo machista que vigora no mundo e que vem de longe. Os livros de História mostram isso, como se a mulher fosse a culpada pela ruína de impérios, da falência de riquezas, da destruição de lares, da decadência social. Como coube ao homem, desde muito antes, o sustento da casa e manutenção do lar, ficou fácil relegar a mulher a um segundo plano, às tarefas ditas menores, aos cuidados dos filhos, do marido e das tarefas caseiras (como se isso fosse pouco e que não exigisse qualidade). Mais friamente, em muitos casos, era tratada apenas como objeto sexual descartável.
Isso está mudando, embora não tenhamos acordado desse atraso antropológico, e ainda assim, em pleno século 21, discutimos o que deveria ser o básico da condição humana: a convivência de gêneros que se completa, onde a manutenção da espécie depende do bom relacionamento entre eles, cada qual com suas capacidades naturais para  isso. Ou seja, meus 50% de espermatozoides mais seus 50% de óvulos e sua capacidade de abrigar uma nova vida no ventre são capazes de gerar outros homens e mulheres.
Voltando à vinheta. De acordo com o histórico do samba, do que foi criado, instituído e aceito, a figura da mulata é uma das marcas registradas desse ritmo, que é um dos símbolos do Brasil, que representa a maior festa popular do mundo. Não digo que o bom samba seja aquele feito por negros ou mulatos, mas historicamente, foram esses grupos que alimentaram essa atividade cultural, fosse como forma de lazer, fosse como forma de protesto às condições a que a população negra era submetida. 
Só para dar uma pequena ideia, a abolição da escravatura aconteceu sem qualquer programação e, de repente, as cidades se viram cheias de homens e mulheres, negros libertos, sem emprego, sem moradia, sem registro, sem “identidade social”. 
Alguns se marginalizaram, outros se vingaram, outros fugiram e todos ganharam o mesmo rótulo reafirmando o sentimento racista, que de velado não tem nada. 
Os ex-escravos passaram a ser tratados como escória sem que fossem dadas a eles as condições mínimas e básicas para complementarem o grupo social onde viviam e onde estavam sendo literalmente jogados e, dessa forma, foram obrigados a viver em sub condições, de onde surgiram os guetos que se transformaram nas favelas da época. 
Hoje em dia, a comunidade, como se chama de forma “politicamente correta”, é o conglomerado de pessoas com menores condições financeiras para sobreviver nas cidades (sejam elas negras, brancas, amarelas e afins), mas que carregam o estigma nefasto e cruel de ser favelado, associado ao crime, à violência,à malandragem. 
Não seria violência a forma de vida a que são submetidos pela condição de vida oferecida? Pobreza não é violência. Violência é falta de condição imposta para manutenção de outros grupos, descumprimento de ações sociais igualitárias, obstrução de acesso à saúde e educação e outros serviços públicos, achatamento social. 
Por outro lado, existiram e existem aqueles que têm o dom de lidar com as dificuldades e fazem uso desse dom para transformar o lamento em obra, os barulhos em ritmos, as dificuldades em aprendizado, as carências materiais em criatividade e as emocionais em poemas. Dessa forma, surgiu a musicalidade que representava aquele grupo, que mesmo sendo triste em algumas de suas letras, tinha nos ritmos uma alegria essencial para se manterem vivos, criando mundos a parte, fortalecendo-se como instituição, como grupos humanos. 
Nesses grupos, cada vez fortalecidos, as identidades foram tomando forma e a beleza da mulher negra e da mulata, fruto da miscigenação com o homem branco, conquistaram seu espaço. Eram essas as mulheres batalhadoras, que enfrentavam o preconceito, o tratamento diferenciado de outros grupos sociais que representavam a nova força desse grupo estigmatizado. Como o racismo sempre foi brando, velado e suas brechas permitiam alguns acessos e convívio com aqueles que não viam diferença nos grupos sociais a que pertenciam, aos poucos, todos  passaram a ter maior visibilidade um dos outros e a aceitação começou a tomar mais fôlego. O ritmo vingou, caiu no gosto popular e se transformou na linguagem de uma sociedade inteira e depois de muito tempo, de muita história, esse resultado acabou virando uma atração comercial de proporções mundiais e lucrativa. Daí a necessidade da criação da logomarca, com  um símbolo forte e apelo popular. Produto esse que representa uma liberação total.
O carnaval origina-se de uma manifestação de fundo religioso medieval onde era permitida a liberação antes de um longo período de abstinência. Período em que tudo seria permitido, os exageros seriam usados como catarse das influências dos maus espíritos que invadem a carne humana, um período em que tudo seria válido.
Essa indústria criada e associada ao calor de verão, a liberação da imagem feminina em tempo mais modernos, uma alusão às mulatas que já eram ícones de beleza e força e símbolo do ritmo, a liberdade que o carnaval se propunha, numa sociedade que não sabe ou diz que sabe muito bem diferenciar os níveis de sensualidade, resultaram na mulata da vinheta.
Essa é uma moeda de vários lados, pois há também quem se aproveite disso tudo para a exploração e fortalecimento do turismo sexual, utilizando a deixa da liberação total, do calor, sol, praias, corpos expostos e férias baratas para quem tem moeda forte no bolso. Existe uma permissividade embutida e sem freios que não consegue barrar alguns comportamentos. Tudo em nome de catarse de sentimentos e desejos reprimidos que tem na especulação sexual uma forma de escape e que precisa ser tão rápida como o ápice sexual e que provoque um imediato relaxamento, uma falsa sensação de calmaria para esse tipo de comportamento nessa situação. Da mesma forma com que se busca esse falso relaxamento com abuso de bebidas e uso de drogas. Drogas que sustentaram o evento por muito tempo, sob vistas grossas ou vigilância tão velada quanto o racismo praticado. Um assunto bem delicado e controverso.
É uma cadeia se embrenha por diversos mundos e submundos que margeiam  a realização de tal grande evento e que permite o hasteamento de diversas bandeiras e discursos infundados como defesa.
Seria necessário explorar a imagem nua? A imagem da mulata não poderia apenas simbolizar o samba?  Por que não um casal  ou alternar as figuras de homens e mulheres de várias raças que representam a miscigenação brasileira, ou passistas, instrumentistas, velha guarda e todas as figuras e entidades que simbolizam a invenção do carnaval e que são partes integrantes de uma escola de samba, uma vez que a festa é para todos? 
Entendo as questões propostas pelas pessoas, entendo que não há necessidade de explorações exacerbadas disso ou daquilo. Entendo misturar oportunidades e vender turisticamente um país tropical com belíssimas praias, povo acolhedor, boa comida. Entendo que não pode haver uma tal permissividade e liberalidade para outras ações que direcionam para outros submundos, uma viagem sem retorno. Entendo a catarse sob alguns aspectos, mas desde que isso não se torne item obrigatório para comemorar o tal evento, que se brinque, que se desfrute sem cair nas armadilhas que cercam esse reinado de quatro dias.
A beleza dos corpos humanos pode sim ser admirada como forma de saúde, de bem-estar, pela beleza que é a máquina humana e não como pedaços de carne num açougue à disposição. Não é uma questão de caretice, mas sim de respeito à pessoa que ali está, respeito à uma manifestação que se tornou cultural e tradicional não pela sexualidade desenfreada e explícita e sim por um contexto social e cultural, respeito a quem se sente intimidado com atos menos pudicos, respeito pela formação religiosa, entre muitos outros aspectos. Há que se ter uma admiração pelo espetáculo que se revela pela criatividade extrema, pela magia, pelo ritmo, pela emoção que causa uma bateria tremendo dentro do peito.
Portanto, em face de poucas informações como essas é que se deve pensar de como vender esse enorme produto, de como fazer essa propaganda, de como imputar a ideia na cabeça das pessoas que é possível sim  ter a maior festa popular do mundo. Espero que os próximos anos e décadas a frente sejam palco dessas boas transformações onde todos os quesitos  alcancem a nota adequada para manutenção de uma empresa que gera lucros e dividendos para todos os envolvidos, sem expor nada além de criatividade e ideias, boa música, críticas, sátiras sugestões, homenagens, apelos, etc. Bom entrudo, troça, carnaval para todos, com muito samba onde for de samba, axé onde for de axé, pagode onde for de pagode, com ou sem abadá, fantasia, serpentina e confete.



*imagem - Quadro de Dina Garcia