segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Conto solto - é de brincadeira,....

Brincadeira de criança sempre tem um gosto de quero mais, uma ausência de perigo e uma irresponsabilidade natural isenta de qualquer maldade. Sempre se ouve dizer dos mais velhos que no seu tempo de criança as brincadeiras eram melhores e mais participativas do que hoje em dia. Que outras seriam impensáveis nos dias de hoje pelo medo coletivo e o excesso de zelo com tudo, que poderia gerar problemas mais sérios. No interior, parece que se curte mais o ato de brincar. Sei de histórias com detalhes engraçados como de um garoto que ao roubar goiaba do vizinho com o filho de outra vizinha, apoia-se em uma cobertura dessas antigas telhas de amianto, sem perceber que as mesmas estão apenas encaixadas e não parafusadas. A queda e o barulho enorme são inevitáveis e acordam o senhor dono da casa, que já de espingardinha de sal em punho, brada que vai matar os moleques. Esses escalam o muro como gatos assustados e não se sabem como passam pelos arames farpados sem nenhum arranhão e batem o recorde de velocidade rua acima. Um deles passa a jato em casa e diz prá mãe que está sendo seguido e jurado de morte. Foram parar no final da avenida que dá acesso à cidade, já na cabeceira da rodovia e voltam com passos contados. Não tinham sido seguidos, não levaram tiros de sal. Chegam em casa e já deparam com uma bronca daquelas com os pais irados por terem que pagar uma cobertura nova por vizinho que não estava no orçamento. Menos mal que não estavam machucados, apenas exaustos da longa corrida de ida e caminhada da volta.
Em outra ocasião, brincam em bandos na rua de casa numa sexta-feira à noite. Já mais tarde, os feirantes do dia seguinte começam a chegar e preparar suas barracas e descarregam muito material. Alguns se aprontam e voltam para as kombis e caminhonetes para dormir cedo. A molecada decide brincar de polícia e ladrão. As caixas ali expostas contêm frutas e legumes e são usadas como parte do jogo. Na brincadeira, se escondendo, alguns moleques enfiam suas mãos por debaixo das lonas e puxam maçãs, carambolas, tomate e correm e comem ali perto o resultado da feira antecipada. Um outro mais afoito, enfia a mão por debaixo da lona e sente algo ao mesmo tempo que ouve o dono da barraca gritar “Ah, moleque safado” e voa como nunca quarteirão acima com o produto roubado nas mãos. Era uma enorme mandioca crua. O que fazer? Esperar que o feirante voltasse a dormir poderia demorar. Então trocam de camisetas entre si e vão devolver dizendo que os moleques do outro quarteirão passaram correndo por ali e largaram no chão. Em recompensa pelo bom ato, ganham uma penca de bananas do feirante sonolento.
Em certa época, a companhia de saneamento decide trocar toda a tubulação de esgoto da cidade criando verdadeiras valas pelas ruas do bairro. São valetas que cortam as ruas na largura do quarteirão resguardando toda a terra retirada para finalização do trabalho. Os paralelepípedos amontoados formam convidativas trincheiras. A molecada munida de muita mamona e estilingue começa uma guerra de grupos, mas a estilingada dói e para não perderem munição, conquistada nas margens do ribeirão, resolvem disputar qual grupo acerta mais grilos e lagartixas nas paredes externas das casas da rua. Resultado: Uma rua inteira com casas manchadas do verde das mamonas em seus beirais, moleques todos doloridos das estilingadas anteriores e alguns vizinhos furiosos com a nova pintura de suas paredes.
Férias são boas e um ótimo momento para se soltar pipas. Idas ao ribeirão para pegar bambu e fazer as varetas, pegar jornal na vizinhança e vender no mercado para comprar linha 10 e papel de seda e fazer a própria pipa com cola de trigo. Passa-se o dia todo na rua debaixo do sol, ignorando os chamados de almoço e pedido das mães para saírem do sol. Já é início de noite e os mais fissurados lutando contra o lusco fusco para tentar enxergar a pipa no céu. No dia seguinte teria mais, Linha sendo enceradas com cerol feito pela galera mesmo que mói vidro e mistura com cola de madeira e passa na linha. Briguinhas no céu e um corre-corre para pegar uma pipa rodando, isso quando no emaranho, a pipa é trazida enroscada recolhendo a linha o mais rápido possível. Cortar e trazer, uma sensação de vitória de boa briga. Mas o tempo resolve fechar e a garoar. As pipas ainda no ar molham seus papeis bem esticados que arrebentam e ficam desgovernadas. Alguns cortam as linhas e deixam a pipa rodar. Quem sabe reaproveitar a armação fica de olho nas maiores para pegar. Numa dessas, uma das grandes enrosca na antena da vizinha faladeira. Telhado úmido e liso. Dois sobem para tentar pegar a pipa enroscada no alto da antena. Conseguem com ajuda de um pedaço de bambu, mas escorregam. O telhado não tem beiral e a única coisa para se segurar é a calha. Essa é trazida inteirinha até o chão segurando os dois moleques que subiram naquele telhado liso molhado pela garoa que caía. Algumas telhas caem e o barulho chama atenção da dona da casa que apronta maior escândalo, gritando para Deus e o mundo. Pipa rasgada na mão, assustados, tiveram, pelo menos, um final de semana inteiro de castigo para fazer mais pipas e começar tudo de novo.
E não acaba por aí.................


* imagem: pipa feita pelo autor


Queimando a Língua!


Não bastassem as agressões cotidianas para com o idioma de Camões, em que se permite sucessivas e agressivas licenças nem sempre poéticas ao nosso português, um dos idiomas mais ricos do mundo e alto grau de dificuldade para ser aprendido, conforme algumas estatísticas, ainda sofremos simbolicamente com um incêndio a um museu em sua homenagem.
Justo numa semana conturbada em que muito se badalou com a inauguração do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, cercado de protestos sobre o fechamento de outros doze museus da capital carioca e o fechamento de institutos de saúde, um conjunto nada harmonioso de descaso público, o estreitamento do acesso à cultura e à saúde pública, tragados pela lama das corrupções.
Nosso Museu da Língua Portuguesa (sim, patrimônio de todos nós), situado no belíssimo prédio da Estação da Luz em São Paulo (ao lado da Pinacoteca do Estado) arde em chamas. Um prejuízo não só pela arquitetura centenária do prédio que ocupa ou pelas instalações modernas desse museu em que palavras e sons cercam o espaço e flutuam pelo ambiente provocando uma imersão total na riqueza da nossa língua. Perde-se, pelo menos temporariamente, um forte elo que mostra, por diversos prismas, a riqueza desse idioma incompreendido. Sim, o português é de fato um idioma que requer um bom estudo para entendê-lo na sua totalidade. 
Flexões que sugerem longas reflexões. Conexões, às vezes, por caminhos mais longos, porém, com uma facilidade poética de moldar palavras e permitir um caimento perfeito ao que se refere. E isso também se perde. Os idiomas mudam num ritmo que acompanham o desenvolvimento dos povos, as misturas, influências, passeiam por modismos, por releituras. E a lavagem repetitiva dessa fina fazenda, esgarça e empobrece o tecido, tornando-o roto. Da “vossa mercê” que virou “você”, que virou “cê” e já se transmuta em “tu” sem a flexão correta.
Triste cena, triste ver o alfabeto ardendo em chamas e palavras desconectas escapando pela fumaça. Que sua recuperação seja rápida e que venha com mais força, venha moderna sem ser vazia, rica sem ser fútil, que venha e se estabeleça e que nos dê voz e que possa ser usada para expressar o que sentimos e somos!


*imagem: uol